O burro andava muito feliz. Sentia-se o rei da criação, isto é, o rei das galinhas, dos patos e dos perus do quintal onde vivia. E também das cabras, dos porcos e das ovelhas, porque aquele quintal era muito povoado. Quando ele zurrava, todos fugiam. As zurradelas do burro, realmente, eram de tal força, que assustavam qualquer bichinho. Até o cão se afastava, em sinal de respeito. - Nunca imaginei que possuísse tanto poder? - dizia de si para si o burro, todo inchado de bazófia. E fartava-se de zurrar, a torto e a direito, clamando que era ele o rei? iam-iam!.. o rei? dos? iam-iam!... dos animais? iam-iam! Vozes de burro não chegam ao céu, diz-se, mas chegaram aos ouvidos do leão. - Não sabia que tinha concorrentes de tamanha qualidade - disse ele, num breve rugido de ironia. Estava bem-disposto o leão. Tinha-se refastelado com um suculento almoço de carne de javali, entremeado com o resto de um cabrito, que sobrara do jantar anterior. Tão cedo não ia ter vontade de comer e muito menos de comer carne de burro, que enjoava. O leão era de gostos mais apurados. Sua Majestade espreguiçou-se, arrotou (com licença!) e disse: - Vamos lá visitar esse fenómeno que se proclamou o rei dos animais. Encontrou o burro a pastar num outeiro, não longe do quintal, onde tinha estábulo. O burro, quando o viu, estremeceu, mas não quis dar parte fraca. Nem parecia bem que um rei, coroado de tão altas orelhas, sinal de majestade, fugisse diante de um animal de quem se não viam as orelhas, escondidas pela farta juba. O burro tinha a coragem dos simples. E dos ignorantes. - Constou-me - começou o leão -, constou-me que te intitulas o rei dos animais. É verdade? - É - respondeu, singelamente, o burro. - Em que te baseias para ostentar o título? Donde te vem tal pretensão? Os teus pais ou os teus avós já eram reis da natureza animal? - questionou o leão, não sustendo a cólera. - Quantos reis burros houve antes de ti? - Iniciei a dinastia - explicou o burro. - Iniciei a dinastia, com a força da minha voz. Queres ver? - Estou cheio de curiosidade - disse o leão, sentando-se nas patas traseiras. - Demonstra-me, então, os teus predicados reais. O burro repuxou o ar para os pulmões e, do alto do outeiro, trombeteou uma zurradela tão poderosa que gafanhotos, perdizes, estorninhos, lebres e coelhos do mato saltaram de todos os lados, num grande alarme. Lá longe, no quintal, os galináceos mandaram as galinhas para a capoeira e eles correram atrás. O mesmo fizeram os patos e os perus. Zurrar do burro equivalia a sirene dos bombeiros ou toque de recolher. - A minha voz não tem igual. Assusto a bicharada em meu redor, como acabo de demonstrar - disse o burro, tossicando de importância. - Efectivamente, possuis uma voz, que faz tremer as folhas - reconheceu o leão. - E como vamos de sombra? - De sombra? - intrigou-se o burro. - Sim, de sombra - insistiu o leão. - Queres reparar? Ora toma atenção. Aqui o leão interpôs o corpo entre o sol e o quintal. A sua sombra majestosa projectou-se sobre a capoeira, a coelheira, o estábulo e o cortelho. Um vozear de pânico despegou-se da natureza, fosse brava ou mansa: - O leão! - como o rolar de trovoada ao longe. Depois, fez-se silêncio e frio, nem que tivesse descido, repentinamente, a noite. Até as cigarras pararam de serrar o sol. O burro sentiu esse raio paralisante, que atravessava tudo, e borrou-se de medo. Já o leão se afastava, pausada e majestosamente. Não precisava de dizer mais nada. A verdadeira grandeza dispensa zurradelas. Em sentido contrário ao do leão, o burro, de orelhas caídas, desceu o outeiro, em direcção ao quintal. Recolhia à estrebaria e levava muito em que pensar.
O burro andava muito feliz. Sentia-se o rei da criação, isto é, o rei das galinhas, dos patos e dos perus do quintal onde vivia. E também das cabras, dos porcos e das ovelhas, porque aquele quintal era muito povoado.
Quando ele zurrava, todos fugiam.
As zurradelas do burro, realmente, eram de tal força, que assustavam qualquer bichinho. Até o cão se afastava, em sinal de respeito.
- Nunca imaginei que possuísse tanto poder? - dizia de si para si o burro, todo inchado de bazófia.
E fartava-se de zurrar, a torto e a direito, clamando que era ele o rei? iam-iam!.. o rei? dos? iam-iam!... dos animais? iam-iam!
Vozes de burro não chegam ao céu, diz-se, mas chegaram aos ouvidos do leão.
- Não sabia que tinha concorrentes de tamanha qualidade - disse ele, num breve rugido de ironia.
Estava bem-disposto o leão. Tinha-se refastelado com um suculento almoço de carne de javali, entremeado com o resto de um cabrito, que sobrara do jantar anterior. Tão cedo não ia ter vontade de comer e muito menos de comer carne de burro, que enjoava. O leão era de gostos mais apurados.
Sua Majestade espreguiçou-se, arrotou (com licença!) e disse:
- Vamos lá visitar esse fenómeno que se proclamou o rei dos animais.
Encontrou o burro a pastar num outeiro, não longe do quintal, onde tinha estábulo.
O burro, quando o viu, estremeceu, mas não quis dar parte fraca. Nem parecia bem que um rei, coroado de tão altas orelhas, sinal de majestade, fugisse diante de um animal de quem se não viam as orelhas, escondidas pela farta juba. O burro tinha a coragem dos simples. E dos ignorantes.
- Constou-me - começou o leão -, constou-me que te intitulas o rei dos animais. É verdade?
- É - respondeu, singelamente, o burro.
- Em que te baseias para ostentar o título? Donde te vem tal pretensão? Os teus pais ou os teus avós já eram reis da natureza animal? - questionou o leão, não sustendo a cólera. - Quantos reis burros houve antes de ti?
- Iniciei a dinastia - explicou o burro. - Iniciei a dinastia, com a força da minha voz. Queres ver?
- Estou cheio de curiosidade - disse o leão, sentando-se nas patas traseiras. - Demonstra-me, então, os teus predicados reais.
O burro repuxou o ar para os pulmões e, do alto do outeiro, trombeteou uma zurradela tão poderosa que gafanhotos, perdizes, estorninhos, lebres e coelhos do mato saltaram de todos os lados, num grande alarme. Lá longe, no quintal, os galináceos mandaram as galinhas para a capoeira e eles correram atrás. O mesmo fizeram os patos e os perus. Zurrar do burro equivalia a sirene dos bombeiros ou toque de recolher.
- A minha voz não tem igual. Assusto a bicharada em meu redor, como acabo de demonstrar - disse o burro, tossicando de importância.
- Efectivamente, possuis uma voz, que faz tremer as folhas - reconheceu o leão. - E como vamos de sombra?
- De sombra? - intrigou-se o burro.
- Sim, de sombra - insistiu o leão. - Queres reparar? Ora toma atenção.
Aqui o leão interpôs o corpo entre o sol e o quintal. A sua sombra majestosa projectou-se sobre a capoeira, a coelheira, o estábulo e o cortelho. Um vozear de pânico despegou-se da natureza, fosse brava ou mansa:
- O leão! - como o rolar de trovoada ao longe.
Depois, fez-se silêncio e frio, nem que tivesse descido, repentinamente, a noite. Até as cigarras pararam de serrar o sol.
O burro sentiu esse raio paralisante, que atravessava tudo, e borrou-se de medo.
Já o leão se afastava, pausada e majestosamente. Não precisava de dizer mais nada. A verdadeira grandeza dispensa zurradelas.
Em sentido contrário ao do leão, o burro, de orelhas caídas, desceu o outeiro, em direcção ao quintal. Recolhia à estrebaria e levava muito em que pensar.
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